Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal

Christophe Dejours, especialista em Trabalho e Saúde Mental, desmonta a espiral de solidão e de desespero que pode levar ao suicídio.

 

 

Nos últimos anos, três ferramentas de gestão estiveram na base de uma transformação radical da maneira como trabalhamos:

  • a avaliação individual do desempenho,
  • a exigência de “qualidade total”,
  • outsourcing.( Terceirização )

O fenômeno gerou doenças mentais ligadas ao trabalho.

Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, Christophe Dejours dirige o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação, que estuda a relação entre trabalho e doença mental.

O Psiquiatra falou do sofrimento no trabalho. Não apenas do sofrimento enquanto gerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto base para a realização pessoal.

“Não há trabalho vivo sem sofrimento, sem afeto, sem envolvimento pessoal, explicou. É o sofrimento que mobiliza a inteligência e guia a intuição no trabalho, que permite chegar à solução que se procura”.

Nas condições de injustiça ou de assédio que hoje em dia se vivem por vezes nas empresas, há um tipo de sofrimento no trabalho que conduz ao isolamento, ao desespero, à depressão.

No seu livro publicado e intitulado Suicide et Travail: Que Faire?, Dejours aborda especificamente a questão do suicídio no trabalho, que se tornou muito mediática com a vaga de suicídios que se verificou recentemente na France Télécom.

Depois da conferência, o médico e cientista falou com o P2 sobre as causas laborais desses gestos extremos, trágicos e irreversíveis.

 

O suicídio ligado ao trabalho é um fenômeno novo?

O que é muito novo é a emergência de suicídios e de tentativas de suicídio no próprio local de trabalho.

As primeiras investigações foram feitas na Bélgica, nas linhas de montagem de automóveis alemães. É um fenómeno que atinge todos os países ocidentais.

O fato de as pessoas irem suicidar-se no local de trabalho tem obviamente um significado. É uma mensagem extremamente brutal, a pior do que se possa imaginar, mas não é uma chantagem, porque essas pessoas não ganham nada com o seu suicídio.

É dirigida à comunidade de trabalho, aos colegas, ao chefe, aos subalternos, à empresa. Toda a questão reside em decodificar essa mensagem.

 

Afeta certas categorias de trabalhadores mais do que outras?

Há suicídios em todas as categorias, nas linhas de montagem, entre os quadros superiores das telecomunicações, entre os bancários, nos trabalhadores dos serviços, nas atividades industriais, na agricultura.

No passado, não havia suicídios ligados ao trabalho na indústria. Eram os agricultores que se suicidavam por causa do trabalho, os assalariados agrícolas e os pequenos proprietários cuja atividade tinha sido destruída pela concorrência das grandes explorações. Ainda há suicídios no mundo agrícola.

 

O que é que mudou nas empresas?

o que mudou foram principalmente três coisas:

  • a introdução de novos métodos de avaliação do trabalho, em particular a avaliação individual do desempenho;
  • a introdução de técnicas ligadas à chamada “qualidade total”,
  • outsourcing, que tornou o trabalho mais precário. Terceirização.

A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais e também os indivíduos.

E se estiver associada à prêmios ou promoções, pode existir  ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo.

E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.

Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí, a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua, acabam por ser destruídos.

As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…

 

Mas o assédio no trabalho é novo?

Não, mas a diferença é que, antes, as pessoas não adoeciam. O que mudou não foi o assédio, o que mudou é que as solidariedades desapareceram.

Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros.

Agora estão sós perante o assediador é isso que é particularmente difícil de suportar. O mais difícil em tudo isto não é o fato de ser assediado, mas o fato de viver uma traição, a traição dos outros.

Descobrimos de repente que as pessoas com quem trabalhamos há anos são covardes, que se recusam a testemunhar, que nos evitam, que não querem falar conosco.

Aí é que se torna difícil sair do poço, sobretudo para os que gostam do seu trabalho, para os mais envolvidos profissionalmente.

Muitas vezes, a empresa pediu-lhes sacrifícios importantes, em termos de sobrecarga de trabalho, de ritmo de trabalho, de objetivos à atingir.

E até  pode ter pedido (o que é algo de relativamente novo) para fazerem coisas que vão contra a sua ética de trabalho, que moralmente desaprovam.

 

Qual é o perfil das pessoas que são alvo de assédio?

São justamente pessoas que acreditam no seu trabalho, que estão envolvidas e que, quando começam a ser censuradas de forma injusta, são muito vulneráveis.

Por outro lado, são frequentemente pessoas muito honestas. Portanto, quando lhes pedem coisas que vão contra as regras da profissão, contra a lei e os regulamentos, contra o código do trabalho, recusam-se a fazer.

Um único caso de assédio tem um efeito extremamente potente sobre toda a comunidade de uma empresa. Uma mulher está a ser assediada e vai ser destruída, uma situação de uma total injustiça; ninguém se mexe, mas todos ficam ainda com mais medo do que antes.

O medo instala-se. Com um único assédio, consegue-se dominar o coletivo de trabalho. Por isso, é importante, ao contrário do que se diz, que o assédio seja bem visível para todos.

 

Voltando ao perfil do assediado, é perigoso acreditar realmente no seu trabalho?

É. O que vemos é que, hoje em dia, envolver-se demasiado no seu trabalho representa um verdadeiro perigo. Mas, ao mesmo tempo, não pode haver inteligência no trabalho sem envolvimento pessoal, sem um envolvimento total.

Isso gera, aliás, um dilema terrível, nomeadamente em relação aos nossos filhos. As pessoas suicidam-se no trabalho, portanto não podemos dizer aos nossos filhos, como os nossos pais nos disseram a nós, que é graças ao trabalho que nós podemos emancipar e realizar-se pessoalmente.

Hoje, somos obrigados a dizer aos nossos filhos que é preciso trabalhar, mas não muito. É uma mensagem totalmente contraditória.

 

Como distinguir um suicídio ligado ao trabalho de um suicídio devido a outras causas?

É uma pergunta à qual nem sempre é possível responder. Hoje em dia, não somos capazes de esclarecer todos os suicídios no trabalho.

Mas há casos em que é indiscutível que o que está em causa é o trabalho. Quando as pessoas se matam no local de trabalho, não há dúvida de que o trabalho está em causa.

Quando o suicídio acontece fora do local de trabalho e a pessoa deixa cartas, um diário, onde explica por que se suicida, também não há dúvidas, são documentos aterradores.

Mas quando as pessoas se suicidam fora do local do trabalho e não deixam uma nota, é muito complicado fazer a distinção.

Porém, às vezes é possível. Um caso recente e uma das minhas vitórias pessoais foi julgado antes do Natal, em Paris. Foi um processo bastante longo contra a Renault por causa do suicídio de vários engenheiros e cientistas altamente qualificados que trabalhavam na concepção dos veículos, num centro de pesquisas da empresa em Guyancourt.

 

Quando é que isso aconteceu?

Em 2006-2007. Houve cinco suicídios consecutivos; quatro atiraram-se do topo de umas escadas interiores, do quinto andar, à frente dos colegas, num local com muita passagem à hora do almoço.

Mas um deles, aliás de origem portuguesa, não se suicidou no local do trabalho. Era muitíssimo utilizado pela Renault nas discussões e negociações sobre novos modelos e produção de peças no Brasil.

Foi utilizado, explorado de forma aterradora. Pediam-lhe constantemente para ir ao Brasil e o homem estava exausto por causa da diferença horária.

Era uma pessoa totalmente dedicada, tinha mesmo feito coisas boas como traduzir documentos técnicos para português, para tentar ganhar o mercado brasileiro para a empresa.

A dada altura, teve uma depressão bastante grave e acabou por se suicidar.

A viúva processou a Renault, que em Dezembro acabou por ser condenada por “falta imperdoável do empregador” conceito do direito da segurança social em França, por não ter tomado as devidas precauções.

Foi um acontecimento importante porque, pela primeira vez, uma grande multinacional foi condenada em virtude das suas práticas inadmissíveis.

Os advogados do trabalho apoiaram-se muito nos resultados científicos do meu laboratório. O acordão do tribunal tinha 25 páginas e as provas foram consideradas esmagadoras.

Havia e-mails onde o engenheiro dizia que já não aguentava mais e que a empresa fez desaparecer limpando o disco rígido do seu computador. Mas ele tinha cópias dos documentos no seu computador de casa. A argumentação foi imparável.

 

Mesmo assim, as empresas continuam a dizer que os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.

Todo mundo tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado.

Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade.

Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada.

Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu.

 

Mas como é que o trabalho pode conduzir ao suicídio? Só acontece a pessoas com determinada vulnerabilidade?

Só muito recentemente é que percebi que uma pessoa podia ser levada ao suicídio sem que tivesse até ali apresentado qualquer sinal de vulnerabilidade psicopatológica.

Fiquei extremamente surpreendido com um caso em especial, do qual não posso falar muito aqui, porque ainda não foi julgado, de uma mulher que se suicidou na sequência de um assédio no trabalho.

A Polícia Judiciária francesa tinha interrogado os seus colegas de trabalho e, como a ordem vinha de um juiz, as pessoas falaram.

Foram 40 depoimentos que descreviam a maneira como essa mulher tinha sido tratada pelo patrão (apenas uma contradiz as restantes 39).

E o que emerge é que, devido ao assédio, ela caiu num estado psicopatológico muito parecido com um acesso de melancolia.

Ora, o que mais me espantou, quando procurei sinais precursores, é que não encontrei absolutamente nada. E, pela primeira vez, comecei a pensar que, em certas situações, quando uma pessoa que não é melancólica é escolhida como alvo de assédio, é possível fabricar, desencadear uma verdadeira depressão em tudo igual à melancolia.

Quando essa pessoa se vê sem châo, tem uma depressão, auto desvaloriza-se, torna-se pessimista, pensa que não vale nada, que merece realmente morrer.

Era uma mulher hiperbrilhante, muitíssimo apreciada, muito envolvida, imaginativa, produtiva. Tinha duas crianças ótimas e um marido excepcional.

Falei com os seus amigos, o marido, a mãe. Não encontrei nenhum sinal precursor de sofrimento mental, nem sequer na sua infância.

 

Aconteceu sem pré-aviso?

Houve um período crítico que terá durado um mês. As pessoas à sua volta deram por isso. Viram que ela estava muito mal, o médico do trabalho foi avisado e obrigou-a a parar de trabalhar e pediu a alguém que a levasse para casa.

Mas ela não queria parar, insistia que queria conseguir fazer o que tinha a fazer. A família também percebeu que algo estava a acontecer, ela consultou um psiquiatra, mas é impossível travar este tipo de descompensação.

Foi para casa da mãe, mas quando pensaram que estava a melhorar um pouco, relaxaram a vigilância e ela atirou-se pela janela.

Nos testemunhos recolhidos pela polícia, vê-se claramente que ninguém se atreveu a ajudá-la; todos dizem que tinham medo.

Tinham medo do patrão, que era um tirano. Também assediava sexualmente outras mulheres e esta mulher era muito bonita.

Não consegui saber se tinha havido assédio sexual, mas várias pessoas evocam no seu depoimento que ela terá caído em desgraça porque tinha recusado a fazer o que ele queria.

 

O caso da France Télécom foi muito mediático, com 25 suicídios. O suicídio é mais frequente nas grandes empresas?

Não. Nas grandes empresas pode ser mais visível, mas há também muitas pequenas empresas onde as coisas correm muito mal, onde os critérios são incrivelmente arbitrários e onde o assédio pode ser pior.

Nas grandes empresas, subsiste por vezes uma presença sindical que faz com que os casos venham a público. Foi assim na France Télécom.

Mas não acredito que a destruição atual do mundo do trabalho esteja a acontecer apenas em algumas grandes multinacionais. E é importante salientar que também há multinacionais onde as coisas correm bem.

 

Quantas pessoas se suicidam por ano, em França e noutros países?

Não há estatísticas do suicídio no trabalho. Em França, foi constituída uma comissão ministerial onde pela primeira vez foi dito claramente que é urgente aplicar ferramentas que permitam analisar a relação entre suicídio e trabalho.

Mas, por enquanto, isso não existe. Nem na Bélgica, nem no Canadá, nem nos Estados Unidos, não existe em sítio nenhum.

Na Suécia, por exemplo, há provavelmente tantos suicídios no trabalho como em França. Mas não há debate. Em muitos países não há debate, porque não existe esse espaço clínico, essa nova medicina do trabalho que estamos a desenvolver em França.

De fato, a França é dos sítios onde mais se fala do assunto. O debate francês interessa muita gente, mas também mete muito medo.

Em França, foi feito um único inquérito, há quatro anos, pela Inspeção Médica do Trabalho, em três departamentos divisões administrativas, passando pelos médicos do trabalho, e chegaram a um total de 50 suicídios em cinco anos.

É provavelmente um valor subestimado, mas, extrapolando-o a todos os departamentos, dá entre 300 e 400 suicídios no trabalho por ano.

Mas, tem como mudar.

 

O que fizeram?

Abandonaram a avaliação individual, aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano.

Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas.

Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convívio do consumidor final.

O resultado é que pensar em termos de convívio  faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo.

Para conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos.

E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto.

Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente.

 

 

Fonte:

Christophe Dejours

Psiquiatra, psicanalista e professor no Conservatoire National des Arts et Métiers, em Paris, dirige o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação, que estuda a relação entre trabalho e doença mental.

Público

https://www.publico.pt

Top