O erro das empresas quanto à saúde mental dos profissionais

Como a tendência de individualização da solução apaga as raízes socioeconômicas do problema, que também demandam atuação das empresas

Salário digno e bom, não é sinônimo de ter uma saúde mental adequada, tanto no trabalho como na vida. Existem inúmeros fatores que levam ao adoecimento, como o esgotamento mental – que leva a outros problemas secundários significativos afetando a todos. Silânia Costa, enfermeira do Trabalho. Foto: Mundiblue.

Em 25 de setembro de 2025, chefes de Estado e de governo reuniram-se na Assembleia Geral das Nações Unidas, que  pela primeira vez, colocou a saúde mental no centro de uma reunião oficial, aprovando uma nova Declaração Política sobre Doenças Não Transmissíveis e Saúde Mental.

O documento reconhece que as condições de trabalho, desigualdade de renda e ausência de proteção social estão entre as principais causas do sofrimento psíquico global.

Os países se comprometeram a criar ambientes promotores de saúde, com condições de trabalho seguras, decentes e de apoio, além de envolver o setor privado na mobilização de recursos e na prevenção de riscos psicossociais.

Essa discussão ganhou força recentemente no Fórum Global de Empresas e Direitos Humanos, realizado em Genebra de 24 a 26 de novembro, que reforçou a centralidade da saúde mental como componente de direitos humanos.

O tema apareceu de forma transversal em painéis sobre devida diligência e gestão de riscos, trabalho decente e fatores psicossociais.

A mensagem que emergiu, tanto nas sessões oficiais quanto nos side events, inclusive na programação da Rede Brasil do Pacto Global, foi inequívoca: não existe conduta e diligência empresariais robustas sem considerar o impacto à saúde mental, especialmente em cadeias de valor complexas e em setores marcados por insegurança, metas agressivas e condições de trabalho precárias.

Ainda assim, persiste a visão de que o sofrimento mental é uma questão individual,  como se a depressão em ambientes corporativos, por exemplo, fosse apenas consequência de chefes autoritários, más relações interpessoais ou falta de resiliência pessoal.

Mas dados mostram que o mal-estar no trabalho tem raízes estruturais.

Cresce a percepção de que o bem-estar é parte essencial da qualidade do trabalho.

A maioria dos trabalhadores hoje afirma priorizar o bem-estar a um aumento salarial, de acordo com pesquisa da plataforma de contratação Monster, que aponta “culturas de trabalho tóxicas” e más práticas de gestão como fatores centrais de adoecimento e sofrimento mental.

O diagnóstico não é falso, mas capta apenas parte do quadro.

De fato, a chamada “doença do século” atinge cada vez mais o ambiente laboral e preocupa empregadores.

A saúde mental  ou a falta dela, foi a terceira causa de afastamento do trabalho no Brasil em 2021, segundo o Observatório de Segurança e Saúde.

Em 2024, os afastamentos por transtornos mentais e comportamentais ultrapassaram 440 mil casos, mais que o dobro da década anterior; e os benefícios concedidos por incapacidade temporária relacionados à saúde mental cresceram 134% entre 2022 e 2024.

Esse aumento contínuo revela que o problema não apenas figura entre as principais causas de afastamento, mas vem se intensificando de maneira preocupante.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente devido a transtornos mentais, custando à economia mundial cerca de 1 trilhão de dólares por ano.

Diante desses números, muitas empresas vêm multiplicando programas internos:

  • contratação de psicólogos,
  • treinamento de gestores,
  • sessões de descompressão,
  • aplicativos de bem-estar.

O terceiro setor também se mobiliza, com iniciativas como o Mente em Foco, do Pacto Global das Nações Unidas, que estimula práticas corporativas voltadas à segurança psíquica.

São todas medidas bem vindas e necessárias, mas insuficientes: ao limitar o problema ao ambiente interno e à cultura organizacional, as empresas perdem nuances de fenômeno social e econômico.

O equívoco fica claro quando se observa o cotidiano de grande parte dos trabalhadores brasileiros.

Não é suficiente capacitar lideranças e gestores sobre a temática se seu empregado precisa fazer dupla jornada para sustentar a família ou oferecer atendimento psicológico on-line a mães em home office que não conseguem se desconectar do trabalho ao realizarem suas tarefas domésticas.

Tampouco resolve assumir compromissos públicos de bem-estar enquanto motoristas e entregadores seguem pressionados a correr riscos de acidente para bater metas.

Nem adotar “soluções lúdicas” de descompressão durante o expediente, como as trend das big-techs de colocar mesas de ping-pong no meio dos escritórios ou apps de mindfulness, se as causas estruturais seguem intocadas.

A abordagem dominante portanto, trata sintomas, não causas.

Oferece psicoterapia de plantão após um burnout, muitas vezes ao custo até mesmo do salário dos colaboradores, e mantém a lógica da responsabilização individual.

*O adoecimento não decorre apenas de “chefes ruins” ou ambientes “desagradáveis”, mas de salários insuficientes, jornadas incompatíveis com a vida, metas descoladas da realidade e ausência de políticas de cuidado.

A desigualdade agrava o quadro.

O Brasil lidera o ranking mundial de ansiedade e divide com a Rússia o topo da desigualdade medida pelo Índice de Gini.

Segundo a OMS, 77% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda.

Pesquisa do DataSenado de 2024 mostra que 67% dos trabalhadores veem no baixo salário o principal inimigo da qualidade de vida, e quase um terço da população vive com menos de R$ 497 mensais (Mapa da Pobreza/FGV, 2022).

As consequências dos transtornos mentais, como a redução de produtividade, afastamentos e os altos custos em saúde, agravam a pobreza, representando uma ameaça muito mais urgente para trabalhadores hipossuficientes.

Falar em bem-estar sem discutir renda é portanto, inverter a ordem dos fatores: um salário digno é saúde mental. (A controvérsias – Silânia Costa, enfermeira do trabalho). 

O problema se intensifica com o chamado futuro do trabalho, que já chegou.

A adoção acelerada de tecnologias, especialmente inteligência artificial, reconfigura funções e impõe requalificação constante.

*O medo da substituição, somado à sobrecarga de equipes cada vez mais enxutas, é hoje uma das principais fontes de ansiedade.

Mudanças demográficas, migrações internas, terceirização e modelos fragmentados completam o cenário, ampliando fatores de riscos psicossociais, como ritmo excessivo, insegurança de carreira, baixa participação em decisões, conflitos na interface trabalho e vida.

Essa realidade exige que as empresas passem da retórica à gestão de risco.

No Brasil, a revisão da NR-1 (que teve sua entrada em vigor postergada) inclui riscos psicossociais, e as boas práticas de devida diligência em direitos humanos reforçam a obrigação de prevenir, mitigar e reparar impactos.

Isso vale tanto para a operação direta quanto para a cadeia de valor, sobretudo em contratos de terceirização e cessão de mão de obra.

Não adianta cobrar programas de bem-estar de fornecedores enquanto se pratica pressão de preços e prazos de 90 dias para pagamento, que inviabilizam a manutenção de equipes estáveis e saudáveis.

Trabalhadores da limpeza, segurança, transporte e logística não são custos invisíveis: são pessoas e a responsabilidade solidária do tomador de serviço, prevista na legislação brasileira, reforça a necessidade de olhar para o risco psicossocial na cadeia de valor.

A pergunta que as empresas deveriam fazer não é se os profissionais preferem um bom salário ou bem-estar no trabalho, e sim se as condições oferecidas garantem uma vida digna, considerando desigualdades e marcadores como gênero, raça, maternidade e idade.

Entre os caminhos possíveis, como a adoção da gestão de riscos psicossociais prevista na nova NR-1, destaca-se um outro caminho nem sempre óbvio: compreender e enfrentar a relação direta entre salário e bem-estar.

*Salário digno, metas realistas, jornadas equilibradas, horas saudáveis de trabalho, condições adaptadas para trabalhadores vulneráveis e políticas de desconexão são em si, medidas de bem-estar.

*Também, a inclusão da saúde mental na matriz de riscos corporativos, com metas, monitoramento e consequências para a liderança.

*Comunicação clara sobre automação e planos de requalificação também são medidas que enfrentam a ansiedade frente ao medo de perda de emprego por automação.

*Já na cadeia de valor, é essencial mapear o grau de exposição humana e ajustar cláusulas contratuais e prazos de pagamento que não asfixiem os prestadores de serviço e evitem o adoecimento coletivo.

*Cuidar da saúde mental no trabalho é acima de tudo, gestão responsável de riscos às pessoas.

Esse debate não é apenas interno é global e normativo.

A mencionada Declaração da ONU de setembro de 2025 reconhece que governos e empresas compartilham responsabilidades na prevenção e promoção da saúde mental.

O texto convoca o setor privado a fortalecer seu compromisso, mobilizando financiamento, parcerias e inovação para criar ambientes de trabalho seguros e saudáveis.

A mensagem é clara: saúde mental é parte da governança econômica e social  e as empresas fazem parte da resposta.

A ONU, acaba de colocar a saúde mental no centro da agenda global até 2030,  e agora as empresas não têm mais desculpa para tratá-la como um tema secundário.

Saúde mental no trabalho não deve ser tratado como algo “menor” ou apêndice da área de recursos humanos (RH), mas um indicador de sustentabilidade econômica e social.

Tratar o tema como direito e risco estratégico para o negócio e para às pessoas e não como benefício ocupacional.

É a única forma de enfrentar o mal do século com a seriedade e com a escala e a corresponsabilidade que ele exige.

Fonte:

ONU – Organização das Nações Unidas.

Assembleia Geral das Nações Unidas.

Fórum Global de Empresas e Direitos Humanos.

Rede Brasil do Pacto Global.

Época Negócios – Colunas.

Mundiblue/Silânia Costa.

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